SARDINHAS E LUA
O menino tinha faces terrosas e grandes olhos acesos.
Enquanto a mãe formigava longe, desentranhando o pregão, ele mantinha-se à
porta de casa, os pés unidos e as mãos nos joelhos, como um faraozinho.
Galinhas activas e cães tristes erravam pela calçada, gatos preguiçavam nos
telhados , o mulherio lavava roupa no tanque público. Mas, quando chovia,não
se viam lavadeiras, nem galinhas, nem gatos -- só um ou outro cão triste.
O empedrado reluzia friamente sob a chuva e o enxurro arrastava pela valeta,
diante do menino, esqueletos e cabeças de sardinha; também arrastava outras
imundícies, mas o que feria mais a atenção eram os despojos de sardinha.
Ao anoitecer, a mãe do menino regressava com o tabuleiro vazio.
-- Vendi as "sadinhas" todas, jóia! Todas! Só trago a tua -- dizia ela ao menino,
amorosamente, agachando-se para lhe dar a mão.
Sem dizer nada, o menino descolava o rabito da soleira fria e entrava em casa,
em passos curtinhos, pela enorme mão da mãe.
-- Vou já fritar a tua "sadinhinha" -- a mãe pousava o tabuleiro, acendia o
lume. -- Tens muita fome, jóia?
Não tardariam os homens grandes. O menino sabia; e olhava medrosamente
para a porta da rua, enquanto a mãe deixava escorrer um fio de azeite na
na sertã.
-- Tens muita fome, jóia?
Diante do lume, com a saia preta tremeluzente de escamas, a mãe parecia um
firmamento.
E o menino, numa lamúria, entre dois bocejos: -- Mãe, vamos numir...
Já os homens grande perpassavam lá fora, espreitando.
-- Pronto, jóia -- a mãe tirava, com o garfo, a sardinha da sertã.
-- Com pãozinho sim? Vê lá se te pelas!
Os homens grandes iam entrando, silenciosamente.
Trémulo, o menino soprava a sardinha jacente num tracalhaz de broa, para a
esfriar, e pedia: -- Mãe deixa-me tomer a sadinha lá fora...
E os homens grandes à espera, silenciosos, expelindo fumaças para o tecto.
Uma prisca saía voando, a piparote, logo morrendo em faúlas no escuro.
Pois sim, jóia; mas tem cuidado, não te calquem os pezinhos -- recomendava a
mãe. E entre beijos chilreados, à orelha do menino:
-- Eles hoje vão embora cedo, vais ver.
-- Sim, mãe.
E o menino, em passos curtinhos, ia sentar-se outra vez à soleira da porta, com
a sua sardinha no seu tracalhaz de broa. Antes de se aferrolhar no quarto com
o primeiro dos homens grandes, a mãe olhava risonhamente o menino e o
menino, semivoltado, olhava seriamente a mãe.
Mas logo da rua surgia um gato -- muito afoito, mesmo arrogante, cauda no
ar, a exigir.
-- Olá, miau!... -- dizia o menino ao gato, afagando-lhe o lombo veludíneo.
E dava-lhe da sua sardinha.
Depois, manquitando, acercava-se o cão -- tristonho, humilde, cauda entre as
patas, a suplicar .
-- Olá, ão-ão!... -- e, acariciando o focinho sofredor do cão, o menino dava-lhe
da sua sardinha.
Até que a Lua despontava, branca e gorda, no negrume dos telhados.
-- Olá, Luinha!... -- sorrindo, o menino oferecia à Lua o resto da sua sardinha
nas mãozitas estendidas, como num prato.
A Lua sorria também ao menino, que julgava ouvi-la dizer:
-- Tome tu, menino.
O que sossegava o menino. A Lua tinha as faces cheias e o menino tinha-as
cavadas. A Lua não era como ele, nem como o cão, nem como o gato. A Lua
devia comer muitas sardinhas.
Com a consciência tranquila, o menino punha-se a esbichar o resto da
sardinha, chupando gulosamente os dedos. No fim comeria o pão.
Erguia amiúde os olhos à Lua, já alta, e sorria-lhe. Eram muito amigos.
E lá ficava a sorrir-lhe, arrotando à sardinha, na frigem da soleira, cada vez
mais absorto, cada vez mais faraozinho.
Nem dava pelos homens grande que saíam, assim como nunca dectetava a
sapateta crescente dos que iam chegando. E um tacão crudelíssimo, um tacão
retardatário calcava invariavelmente os seus pezitos unidos, arroxeados, nus.
Que grito!...
E o menino chorava enquanto sentisse as dores deitando cuspe nos pezitos
-- único remédio que conhecia.
Vinha o cão -- tristonho, cabisbaixo, a manquitar -- e lambia-lhe os pezitos,
a cara reluzente de lágrimas, de novo os pezitos. Rebujando, o menino afagava
a contrapelo o cão que o lambia e olhava medrosamente para dentro, onde
alguns homens grandes estavam ainda à espera. Depois, água nos olhos,
sacudido por impos, fitava outra vez a Lua, numa queixa muda, até o último
dos homens grandes sair.
-- Anda, jóia vamos "numir" -- a mãe curvava-se para o menino, sem abotoar
a blusa, sem compor a cabeleira -- Viste como hoje foi depressa, viste?
O menino abraçava-a contente, triunfante; e, sobre aquele ombro morno,
dentado, nu, erguia um olharzito radioso à Lua, um último, para que a Lua
soubesse: -- Ele, o homem pequenino, iria "numir" toda a noite com a mãe!
Toda a noite!...
Mais tarde chovia; e a aguaça, correndo impetuosamente pela valeta,
arrastava consigo os despojos da sardinha, em promiscuidade com outras
imundícies.
ALTINO M. DO TOJAL