Thursday, January 29, 2009

Guerra Civil - Miguel Torga




GUERRA CIVIL


É contra mim que luto.

Não tenho outro inimigo.

O que penso,

O que sinto,

O que digo

E, o que faço,

É que pede castigo

E desespera a lança no meu braço.


***


Absurda aliança

De criança

E adulto,

O que sou é um insulto

Ao que não sou;

E combato esse vulto

Que à traição me invadiu e me ocupou.


Miguel Torga





ana/eu!


Saturday, January 24, 2009

Quase um poema de amor - Miguel Torga









QUASE UM POEMA DE AMOR!


Há muito tempo que já não escrevo um poema,

De amor,

E é o que que eu sei fazer com mais delicadeza!

A nossa natureza

Lusitana

Tem essa humana

Graça

Feiticeira

De tornar de cristal

A mais sentimental

E baça

Bebedeira


***


Mas ou seja que vou envelhecendo

E ninguém me deseje apaixonado,

Ou que a antiga paixão

Me mantenha calado

O coração

Num íntimo pudor,

- Há muito tempo já que não escrevo

um poema

De amor...


Miguel Torga






Alentejo - Miguel Torga






ALENTEJO


A luz que te ilumina,

Terra da cor dos olhos de quem olha!

A paz que se adivinha

Na tua solidão

Que nenhuma mesquinha condição

Pode compreender e povoar!

O mistério da tua imensidão

Onde o tempo caminha

Sem chegar!...


Miguel Torga

Thursday, January 22, 2009

Outono - Miguel Torga








OUTONO


Tarde pintada

Por não sei que pintor.

Nunca vi tanta cor

tão colorida!

Se é de morte ou e vida,

não é comigo.

Eu, simplesmento, digo

Que há fantasia

Neste dia,

Que o mundo me parece

Vestido por ciganas adivinhas,

E que gosto de o ver, e me apetece

Ter folhas, como as vinhas...


Miguel Torga





Wednesday, January 21, 2009

MÃE - Miguel Torga





Mãe...


Que desgraça na vida aconteceu,

Que ficaste insensível e gelada?

Que todo o teu perfil se endureceu

Numa linha severa e desenhada?


II


Como as estátuas que são gente nossa

Cansada de palavras e ternura,

Assim tu me pareces no teu leito.

Presença cinzelada em pedra dura,

que não tem coração dentro do peito.


III


Chamo aos gritos por ti -- não me respondes.

Beijo-te as mãos e o rosto -- sinto frio,

Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes,

Por detrás do terror deste vazio.


IV


Abre os olhos ao menos, diz que sim!

Diz que me vês ainda, que me queres.

Que és a eterna mulher entre as mulheres.

Que nem a morte te afastou de mim!


Miguel Torga







Somewhere Over the Rainbow - John Lennon



Somewhere Over the Rainbow


« Eu vejo o vento,

eu vejo as árvores,

as nuvens,

Eu sinto a tristeza, eu sinto os sonhos

Tudo está claro em meu coração

Eu sinto a vida, eu sinto amor

Tudo está claro em nosso mundo...


John Lennon

Tuesday, January 20, 2009

Eugénio de Andrade






Frente a Frente


Nada podeis contra o amor,

Contra a cor da folhagem,

contra a carícia da espuma,

contra a luz nada podeis.


**


Podeis dar-nos a morte,

a mais vil, isso podeis

- e é tão pouco


**


As palavras

São como um cristal,

as palavras

Algumas, um punhal,

um incêndio.


**


Outras,

orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

barcos ou beijos,

as águas estremecem.


**


Desamparadas, inocentes, leves

Tecidas são de luz e são a noite

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.


**


Quem as escuta?

Quem as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?


**

Eugénio de Andrade







Eugénio de Andrade





Pseudónimo de José Fontinhas Rato

Poeta português nascido na freguesia de

Póvoa de Atalaia (Fundão) em 19 de

Janeiro de 1923.

Faleceu a 13/Junho de 2005, no Porto

após doença neurológica prolongada.





« Passamos pelas coisas sem as ver,

gastos, como animais envelhecidos:

Se alguém chama por nós não respondemos,

se alguém nos pede amor não estremecemos,

como frutos de sombra sem sabor,

vamos caindo ao chão, apodrecidos... »


Eugénio de Andrade






ana/eu!



Sunday, January 18, 2009

Poema de Francisco Bulhão






Que a tesoura corta

E, na tarde quente,

Junho está à porta.


II


Um halo de neve

Espuma ou algodão,

Envolve de leve

Ás reses no chão.


III


Na luz forte, em roda,

Zumbem as abelhas.

E há balidos soltos

E tristes, de ovelhas.


IV


E ao soltar aquelas

Livres, já, dos veios,

Parecem gazelas,

Em saltos singelos.


V


Rente, rente, rente,

A tesoura corta.

E, na tarde quente,

Junho está à porta!


***

Francisco Bugalho




ana/eu!

Soneto - António Gedeão






SONETO


Não pode Amor por mais que as falas mude

exprimir quanto pesa ou quando mede.

Se acaso a comoção falar concede

é tão mesquinho o tom que o desilude.


II


Busca no rosto a cor que mais o ajude,

magoado parecer aos olhos pede,

pois quando fala a tudo o mais excede

não pode ser Amor com tal virtude.


III


Também eu das palavras me arreceio,

também sofro do mal sem saber onde

busque a expessão maior do meu anseio.


IV


E acaso perde, o Amor que a fala esconde,

em verdade, em beleza, em doce enleio?

Olha bem meus olhos, e responde...


***

António Gedeão







ana/eu!



Saturday, January 17, 2009

Vem Vento, Varre... Adolfo C.Monteiro





Vem vento, varre

sonhos e mortos.

Vem vento, varre

medos e culpas.

Quer seja dia,

quer faça treva,

varre sem pena,

leva adiante

paz e sossego,

leva contigo

nocturnas preces,

presságios fúnebres,

pávidos rostos

só covardia.

Que fique apenas

erecto e duro

o tronco estreme

de raiz funda.

Leva a doçura,

se for preciso:

ao canto fundo

basta o que basta.

Vem vento, varre!
Adolfo Casais Monteiro
ana/eu!




Friday, January 16, 2009

Lágrima de Preta - António Gedeão






LÁGRIMA DE PRETA
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para analisar.
II
Recolhi a lágrima
Com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
III
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
IV
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
V
Ensaiei o frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
VI
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão