Sunday, July 1, 2007

Sardinhas e Lua - Altino M.do Tojal




SARDINHAS E LUA

O menino tinha faces terrosas e grandes olhos acesos.

Enquanto a mãe formigava longe, desentranhando o pregão, ele mantinha-se à

porta de casa, os pés unidos e as mãos nos joelhos, como um faraozinho.

Galinhas activas e cães tristes erravam pela calçada, gatos preguiçavam nos

telhados , o mulherio lavava roupa no tanque público. Mas, quando chovia,não

se viam lavadeiras, nem galinhas, nem gatos -- só um ou outro cão triste.

O empedrado reluzia friamente sob a chuva e o enxurro arrastava pela valeta,

diante do menino, esqueletos e cabeças de sardinha; também arrastava outras

imundícies, mas o que feria mais a atenção eram os despojos de sardinha.

Ao anoitecer, a mãe do menino regressava com o tabuleiro vazio.

-- Vendi as "sadinhas" todas, jóia! Todas! Só trago a tua -- dizia ela ao menino,

amorosamente, agachando-se para lhe dar a mão.

Sem dizer nada, o menino descolava o rabito da soleira fria e entrava em casa,

em passos curtinhos, pela enorme mão da mãe.

-- Vou já fritar a tua "sadinhinha" -- a mãe pousava o tabuleiro, acendia o

lume. -- Tens muita fome, jóia?

Não tardariam os homens grandes. O menino sabia; e olhava medrosamente

para a porta da rua, enquanto a mãe deixava escorrer um fio de azeite na

na sertã.

-- Tens muita fome, jóia?

Diante do lume, com a saia preta tremeluzente de escamas, a mãe parecia um

firmamento.

E o menino, numa lamúria, entre dois bocejos: -- Mãe, vamos numir...

Já os homens grande perpassavam lá fora, espreitando.

-- Pronto, jóia -- a mãe tirava, com o garfo, a sardinha da sertã.

-- Com pãozinho sim? Vê lá se te pelas!

Os homens grandes iam entrando, silenciosamente.

Trémulo, o menino soprava a sardinha jacente num tracalhaz de broa, para a

esfriar, e pedia: -- Mãe deixa-me tomer a sadinha lá fora...

E os homens grandes à espera, silenciosos, expelindo fumaças para o tecto.

Uma prisca saía voando, a piparote, logo morrendo em faúlas no escuro.

Pois sim, jóia; mas tem cuidado, não te calquem os pezinhos -- recomendava a

mãe. E entre beijos chilreados, à orelha do menino:

-- Eles hoje vão embora cedo, vais ver.

-- Sim, mãe.

E o menino, em passos curtinhos, ia sentar-se outra vez à soleira da porta, com

a sua sardinha no seu tracalhaz de broa. Antes de se aferrolhar no quarto com

o primeiro dos homens grandes, a mãe olhava risonhamente o menino e o

menino, semivoltado, olhava seriamente a mãe.

Mas logo da rua surgia um gato -- muito afoito, mesmo arrogante, cauda no

ar, a exigir.

-- Olá, miau!... -- dizia o menino ao gato, afagando-lhe o lombo veludíneo.

E dava-lhe da sua sardinha.

Depois, manquitando, acercava-se o cão -- tristonho, humilde, cauda entre as

patas, a suplicar .

-- Olá, ão-ão!... -- e, acariciando o focinho sofredor do cão, o menino dava-lhe

da sua sardinha.

Até que a Lua despontava, branca e gorda, no negrume dos telhados.

-- Olá, Luinha!... -- sorrindo, o menino oferecia à Lua o resto da sua sardinha

nas mãozitas estendidas, como num prato.

A Lua sorria também ao menino, que julgava ouvi-la dizer:

-- Tome tu, menino.

O que sossegava o menino. A Lua tinha as faces cheias e o menino tinha-as

cavadas. A Lua não era como ele, nem como o cão, nem como o gato. A Lua

devia comer muitas sardinhas.

Com a consciência tranquila, o menino punha-se a esbichar o resto da

sardinha, chupando gulosamente os dedos. No fim comeria o pão.

Erguia amiúde os olhos à Lua, já alta, e sorria-lhe. Eram muito amigos.

E lá ficava a sorrir-lhe, arrotando à sardinha, na frigem da soleira, cada vez

mais absorto, cada vez mais faraozinho.

Nem dava pelos homens grande que saíam, assim como nunca dectetava a

sapateta crescente dos que iam chegando. E um tacão crudelíssimo, um tacão

retardatário calcava invariavelmente os seus pezitos unidos, arroxeados, nus.

Que grito!...

E o menino chorava enquanto sentisse as dores deitando cuspe nos pezitos

-- único remédio que conhecia.

Vinha o cão -- tristonho, cabisbaixo, a manquitar -- e lambia-lhe os pezitos,

a cara reluzente de lágrimas, de novo os pezitos. Rebujando, o menino afagava

a contrapelo o cão que o lambia e olhava medrosamente para dentro, onde

alguns homens grandes estavam ainda à espera. Depois, água nos olhos,

sacudido por impos, fitava outra vez a Lua, numa queixa muda, até o último

dos homens grandes sair.

-- Anda, jóia vamos "numir" -- a mãe curvava-se para o menino, sem abotoar

a blusa, sem compor a cabeleira -- Viste como hoje foi depressa, viste?

O menino abraçava-a contente, triunfante; e, sobre aquele ombro morno,

dentado, nu, erguia um olharzito radioso à Lua, um último, para que a Lua

soubesse: -- Ele, o homem pequenino, iria "numir" toda a noite com a mãe!

Toda a noite!...

Mais tarde chovia; e a aguaça, correndo impetuosamente pela valeta,

arrastava consigo os despojos da sardinha, em promiscuidade com outras

imundícies.


ALTINO M. DO TOJAL


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