Friday, February 29, 2008

Da minha Janela - Florbela Espanca




Mar alto! Ondas quebradas e vencidas

Num soluçar aflito e murmurado...

Ovo de gaivotas, leve, imaculado,

Como neves nos píncaros nascidas!


II

Sol! Ave a tombar, asas já feridas,

Batendo ainda num arfar pausado...

Ó meu doce poente torturado

Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!


III

Meu verso de Samain cheio de graça,

Inda não és clarão já és luar

Como branco lilás que se desfaça!


IV

Amor! Teu coração trago-o no peito...

Pulsa dentro de mim como este mar

Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!...


Florbela Espanca

Saturday, February 9, 2008

Mar Manhã - Fernando Pessoa


Suavemente grande avança

Cheia de sol a onda do mar;

Pausadamente se balança,

E desce como a descançar


II

Tão lenta e longa que parece

De uma criança de Titã

O glauco seio que adormece,

Arfando à brisa da manhã.


III

Parece ser um ente apenas

Este correr da onda do mar,

Como como uma cobra que em serenas

Dobras se alongue a colear.


IV

Unido e vasto e interminável

Não são sossego azul do sol,

Arfa com um mover-se estável

O oceano ébrio de arrebol.


V

E a minha sensação é nula,

Quer de prazer, quer de pesar...

Ébria de alheia a mim ondula

Na onda lúcida do mar.


FERNANDO PESSOA




Tuesday, February 5, 2008

Cecília Meireles


Venturoso Sonhar-te - Cecília Meireles

Venturosa de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda a parte,
mas, amor, só no meu peito!)
II
- Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro, que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!
III
Em barca de nuvem sigo:
e o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.
IV
- Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!
Cecília Meireles

Friday, February 1, 2008

Ciganos - Miguel Torga

Tudo o que voa é ave
Desta janela aberta
A pena que se eleva é mais suave
E a folha que plana é mais liberta.
II
Nos seus braços azuis o céu aquece
Todo o alado movimento.
É no chão que arrefece
O que não pode andar no firmamento.
III
Outro levante, pois, ciganos!
Outra tenda sem pátria e mais além
Desumanos
São os sonhos, também ...
Miguel Torga