Saturday, January 26, 2008

A rua dos cataventos - Mário Quintana




A rua dos cataventos


Da vez primeira em que me assassinaram,

Perdi o jeito de sorrir que eu tinha.

Depois, a cada vez que me mataram,

Foram levando qualquer coisa minha.


II


Hoje, dos meus cadáveres eu sou

O mais desnudo, o que não tem mais nada.

Arde um toco de Vela amarela,

Como o único bem que ficou.


III


Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!

Pois dessa mão avaramente adunca

Não haverão de arrancar a luz sagrada.


IV


Aves da noite! Asas do horror! Voejai!

Que a luz trêmula e triste como um ai,

A luz de um morto não se apaga nunca!


Mário Quintana

Tuesday, January 22, 2008

Thursday, January 17, 2008

Queimada - Francisco Bugalho




Lenta, ondulante, latente,

Fulgurante ou decadente,

A longa queimada vem,

Na faixa do horizonte.


II

Avança desde o poente,

Enche a noite e cala a fonte.


III

Tudo se cala, se encerra,

Em volta na escuridão,

Toda a paisagem se aterra,

Não há estrela na amplidão:

- Que o lume, raso se aterra

Matou-lhe a cintilação.


IV

Há cheiro a palha queimada,

A matos secos ardendo,

Gritos soando, na noite,

À caça, louca, correndo,

Sem saber onde se acoite,

À espera da madrugada!

Francisco Bugalho





Wednesday, January 16, 2008


Depoimento - Miguel Torga


Não há céu que me queira depois disto,
Nem deus capaz de ouvir-me.
Um homem firme
É firme até no céu,
E até diante
Do Criador!
É o que diria se, ressuscitado,
Fosse chamado
A depor!

Miguel Torga

As Fontes - Sophia de Mello B.Andresen

As Fontes
« Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo irreal,
E calma subirei até às fontes.
II
Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.
III
Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser. »
**
Sophia de Mello Breyner Andresen

Tuesday, January 15, 2008

A reabilitação do gato - Guilherme de Melo

Instântaneos:
De um modo geral, os portugueses não gostam de gatos. Acham-nos
traiçoeiros. Inventam que eles provocam a asma. Decidem que é
animal que não conhece dono. A gandulagem faz gala em gabar-se
de ter arrebentado não sei quantos gatos a pontapé ou de, pelo
menos, ter já atado uma lata à cauda de algum, para ver o bicho,
espavorido, correndo rua fora. Nas aldeias, muitas vezes regam-
-nos com petróleo e chegam-lhes um fósforo. Uma gracinha, claro.
Amor, amor, têm-nos pelos cães. O fiel amigo. O ai-jesus da casa.
O que nunca se vira ao dono mesmo que impiedosamente surrado.
A cada pontapé, entre ganidos estridentes, ei-lo a espojar-se pelo
chão de barriga para cima e rabo a dar-a-dar, a mão que o
atormenta.
Coisa que, honra lhe seja feita, o gato jamais fará. Não se metam
com ele, que ele se não meterá com ninguém. Mas incomodem-no,
atormentem-no -- e, seja lá quem for, só se não puder é que lhe não
retribui com unhada certeira. A isto se chama ter personalidade -- coisa que no seu servilismo bajulador, o cão totalmente desconhece
Mas eis que o mito durante tantos anos alimentado à volta dos
canídeos começa fragorosamente a ruir. A pouco e pouco chegou-
-se à conclusão que qualquer "doberman" é uma máquina de
destruição e um assassino em potência. Que as queixadas de um
"boxer" são uma ameaça permanente. Na Grã-Bretanha, aquela
raça, aliás feiíssima, que por lá prolífera, daqueles cães baixinhos e
com focinho de porco, está a revelar-se um perigo público e os
jornais estão cheios de episódios sangrentos, envolvendo as
próprias famílias que os possuem. Há dias em Amesterdão, um
bebé de um ano foi dilacerado até à morte sob o olhar horrorizado
da mãe, por um "pitbull terrier" -- e ficou a saber-se que a coisa se
terá dado por imprudência pura dos pais da criança "pois os cães
daquela raça"são obrigados, por lei, a usar sempre um açaime dada
a sua ferocidade", segundo a France Presse.
Então?? Em que ficamos?? Fiel amigo?? O companheiro ideal para
crianças?? Ora se nos deixássemos uma vez por todas, de continuar
a alimentar esse mito estúpido que de geração para geração, foi
transformando o cão num herói maravilhoso, que, de facto, na
realidade esta bem longe de ser??
Por mim confesso: estou sem por cento com o simpático gato do
falecido professor Agostinho da Silva!
Guilherme de Melo

Sunday, January 13, 2008

Soneto do Cativo - David Mourão-Ferreira

Soneto do Cativo

I
Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias
tão longe da verdade e da invenção;

II
o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que outros dirão ou não dirão;

III
se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscas nos lençóis a mais sombria
a razão de encantamento e de desprezo;

IV
não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

David Mourão-Ferreira



















Friday, January 4, 2008

O INFANTE


O INFANTE


Aos homens ordenou que navegassem

Sempre mais longe para ver o que havia

E sempre para o sul e que indagassem

O mar a terra e vento a calmaria

Os povos e os astros

E no desconhecido cada dia entrassem!



Sophia de Mello Breyner Andresen